Estudos feitos por Ramos (2010) revelam que os quadrinhos não são um mero entretenimento, embora utilizem o humor e a ironia, muitas vezes para compor as piadas das charges (que abordam temas dos noticiários e apresentam seres e elementos reais de forma caricata) e das tiras cômicas (que ilustram personagens fictícios em situações fictícias), quadrinhos segundo Ramos (ibidem, p. 20) são: “[...] um hipergênero que agregaria diferentes outros gêneros, cada um com suas peculiaridades”.
O autor revela que há poucos estudos linguísticos sobre este hipergênero, pois o mesmo é visto, historicamente, de maneira pejorativa inclusive no meio universitário, contudo, muitos clássicos da literatura foram adaptados para os quadrinhos, isto demonstra que sua função está além do lazer, possui pontos comuns com a literatura e dialoga com o cinema, o teatro, a fotografia e tantas outras linguagens, predomina o tipo textual narrativo, possibilitando a criação de inúmeras obras com diversos discursos.
Segundo Ramos (ibidem, p. 17): “Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos”.
A seguir, no próximo item deste artigo, há uma análise de um dos gêneros dos quadrinhos, algumas tiras cômicas do jornalista americano Bill Watterson: Calvin e Haroldo.
2. AS “VOZES” EM CALVIN E HAROLDO
Abaixo, encontra-se a primeira tira de análise:
(WATTERSON, 2010, p. 13)
Nesta tira revela-se um discurso machista por parte de Calvin que não deixa Susie subir na árvore por ser uma menina, isto pressupõe que se Susie fosse um menino, Calvin lhe permitira subir. Ao longo da sequência de quadros, percebe-se a intencionalidade de Calvin somente no final, onde há o humor: ele queria provocá-la por meio da “discriminação sexual”, mas ela não tinha interesse em subir na árvore, logo, a proibição de Calvin: “[...] garotas não são permitidas.” não surtiu o efeito desejado pelo garoto.
A “voz” presente na fala de Calvin é a que remete a um grupo social, mais precisamente: homens, que não aceitam a participação das mulheres em muitos lugares, setores e situações onde somente eles atuavam (segurança, política, comércio, entre outros), esta “voz” existe e permeia o discurso do personagem masculino (Calvin), sendo ele uma criança, está reproduzindo algo que aprendeu com o universo adulto (a televisão), aderindo a uma “voz” machista e incorporando-a em seu próprio discurso.
A “voz” que representa o grupo social “homens”, ilustra um fato cotidiano (existência do machismo) presente em todas as sociedades.
Agora, observe a segunda tira:
(ibidem, p. 15)
Acima há uma cena comum, Calvin vendo televisão, porém, o programa ao qual ele assiste é sobre um casal de amantes que pretende eliminar seus cônjuges, aqui temos a “voz do adultério” proveniente de um fato que se relaciona com o discurso de outro grupo social (adúlteros), pois, o casal representa ações que ocorrem nas sociedades, a fala de Calvin no último quadro confirma: “As vezes eu acho que aprendo mais quando eu fico em casa do que na escola.”
A mídia informa ou reproduz (ainda que de modo fictício) situações reais, o que é visto por Calvin, por essa razão o garoto produz tal fala, afinal, na escola ele aprende ciência e com a tv, observa e absorve exemplos do cotidiano.
Leia a terceira e última tira:
(ibidem, p. 15)
Ao entregar a primeira mesada ao filho (Calvin), o pai não imaginava que ele soubesse o “valor do dinheiro” exposto pelo garoto no terceiro quadro, percebe-se a “voz do capitalismo”, ou seja: posses, consumo. Uma “voz” que compõem o cenário mundial, algo completamente oposto ao que o pai pretendia ensinar: uso consciente, voltado às necessidades, por fim, conclui: “Eu desisto de novo querida”.
Segundo os conceitos de Bakhtin por Beth Brait (2009), nenhum discurso existe sem que antes dele houvesse um outro, o mesmo vale para as vozes dos discursos, nenhuma voz existe sem antes ter sido influenciada por outra, isto é evidente nas tiras acima, as vozes que permeiam os discursos de Calvin provém de outras existentes.
Bakthin afirma (apud. Brait 2009, p. 65):
As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais. O único que pode diferenciar-se é a relação de reciprocidade entre essas duas vozes. A transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta já leva a um atrito entre duas interpretações numa só palavra, tendo em vista que não apenas perguntamos como problematizamos a afirmação do outro. O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas.
3. CALVIN E HAROLDO: O ATO DE “PENSAR” AS SUAS VOZES
As vozes encontradas no corpus de análise revelam críticas sociais incorporadas à simplicidade e ao humor produzidos por Watterson, o autor traz aos leitores polêmicas (discriminação sexual, adultério, capitalismo) presentes no cotidiano universal, discutidas ou vivenciadas por seu protagonista (Calvin).
Watterson introduz Calvin em situações comuns onde o personagem utiliza sua criatividade para realizar ações que julga interessantes, ora apreendidas da mídia (tv), ora de sua experiência (interação com Haroldo, com os pais, com Susie, etc), faz os leitores “pensarem” sobre suas aventuras e a própria realidade.
Fonte: PORTAL EDUCAÇÃO
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